O especialista em morfologia urbana, Vítor Oliveira, 39 anos, professor universitário e investigador, considera que a partir da segunda metade do século XX se foi perdendo a capacidade de estruturar um espaço urbano de qualidade. É preciso por isso melhorar o planeamento começando pelos Planos Directores Municipais. É um defensor da reabilitação dos centros históricos, mas não colocaria de parte as novas construções para dar vida a algumas zonas das cidades. É um dos organizadores do 21º Seminário Internacional de Morfologia Urbana que decorre pela primeira vez em Portugal de 3 a 6 de Julho (ver vídeo).
Como especialista em morfologia urbana como é que vê as cidades portuguesas?
As cidades portuguesas partilham muitas semelhanças mas também têm especificidades muito próprias. A partir de dada altura, na segunda metade do século XX, fomos perdendo a capacidade de estruturar um espaço urbano de qualidade. Há um livro muito interessante - «Aspectos da Organização do Espaço Português», de Alfredo Matos Ferreira - que analisa 10 cidades médias (Porto e Lisboa estão excluídas) e o modo como essa capacidade de estruturar o espaço urbano se foi perdendo. Todos andamos a tentar perceber como é que se fazia, em alguns casos, tão bem no passado. Há muitos factores que justificam esta mudança. Se calhar um dos mais importantes é o facto de terem surgido muitos intervenientes no espaço urbano com um peso tão grande ou maior que as autarquias. As câmaras foram perdendo capacidade de intervenção. Passaram a reagir em vez de conduzir os acontecimentos. Isso faz, por um lado, com que uma série de cidades portuguesas, ruas e partes de cidades estejam cada vez mais desarticuladas e faz também com que os edifícios que vão surgindo [alguns deles muito bem desenhados, não é isso que está em causa] não consigam estabelecer diálogo com os edifícios envolventes para criar cidade, que era uma coisa que se fazia no passado.
Mas mesmo com mais intervenientes privados as obras continuam a precisar de licença camarária…
A nossa actividade de planeamento também tem as suas responsabilidades. Temos que fazer um esforço para melhorar. Temos que ser capazes de produzir melhores planos, melhores processos de planeamento e melhores resultados sobre o território.
Refere-se aos Planos Directores Municipais (PDM)…
O PDM, quer se goste ou não, é o principal, embora não o único, instrumento de planeamento em Portugal. Muitas vezes quando lemos um PDM ficamos com a sensação de que as partes não batem umas com as outras e que não colaboram para uma mesma estratégia.
Acha que não há harmonia em alguns PDM, que deveriam dar o exemplo?
Sim. A preparação de um bom plano depende só dos técnicos e dos políticos que elaboram esse plano. Quando tentamos perceber o que é que durante a implementação correu mal há toda uma série de acontecimentos e de actores a intervir, mas no momento da preparação somos só nós.
Então falta mais visão crítica aos técnicos?
Valorizo o papel das câmaras e acho que as partes negativas do nosso território poderiam ser piores se não houvesse tantos bons técnicos nas câmaras. Mas os planos têm que ser mais coerentes. Têm que ser mais relevantes para as necessidades e ambições de cada cidade. Muitas vezes nós lemos dois planos para partes diferentes do território português e parece-nos que até podiam ser invertidos. Têm objectivos muito vagos, coisas que se repetem de uns para outros e não são contextualizadas para cada concelho. Por outro lado, acho que não sabemos aproveitar o sistema de planeamento que temos. Em 2006 o Porto foi capaz de construir um PDM, segundo o regulamento que existia, que ao nível da regulação morfológica da actividade privada é um plano exemplar, quer no contexto nacional, quer internacional. Temos que explorar o enquadramento legal e não estar sempre a questioná-lo e a querer mudá-lo.
Além disso o que poderá ser melhorado?
É preciso trazer também mais participação pública. O tema é recorrente mas a verdade é que estamos a falhar. Temos que perceber por que é que as pessoas não se interessam por estes documentos. Um dos motivos é o facto de o PDM ser um documento muito difícil. Ler um PDM de uma ponta a outra é um trabalho só para especialistas. Devia ser perceptível a todos os cidadãos. Quanto mais pessoas se identificarem no plano, mais força ele terá para a sua implementação. A função de um plano não é tê-lo em cima da mesa durante os dez anos em que está em vigor, mas recorrer a ele em cada tomada de decisão.
As câmaras deveriam ter mais técnicos?
A solução passa eventualmente por alguma reorganização e não por recorrer cada vez mais a consultorias externas. Recorro a um consultor externo para elaborar um plano mas quem faz o acompanhamento e implementação do plano é outra equipa completamente diferente. Isto prejudica a identificação dos técnicos com o plano. Também não temos uma cultura de avaliação para que, dez anos passados do início da implementação do plano, possamos ir ver ao território o que foi feito. Não fazemos isso de forma rigorosa. Temos um ‘feeling’... Enquanto não formos capazes de aprender com isso estamos sempre a partir do zero e não a avançar tanto como poderíamos.
Muitas vezes não se cumprem porque há alterações.
A parte que se cumpre deveria ser monitorizada.
Considera que o Porto é a grande referência?
Depende do prisma. Um dos problemas em Portugal é centrarmo-nos exclusivamente no PDM. Isso pode ser bem feito, como no caso do Porto que tem um bom PDM. Mas no caso de Lisboa, no período em que Jorge Sampaio foi presidente da autarquia, entre 1990 e 1993, apostou-se em ter um bom PDM mas assumindo-se que este não conseguia fazer tudo. Em simultâneo preparou-se um bom plano estratégico e lançou-se uma série de planos de ordem inferior, planos de urbanização e planos de pormenor. Esse período foi talvez o mais rico em democracia em termos do que deve ser uma dinâmica de planeamento. O plano do Porto é um excelente exemplo porque consegue entender bem o que são as formas urbanas de uma cidade e consegue regular bem a acção dos privados. Faz uma análise muito detalhada das formas urbanas existentes e estabelece regras do jogo muito adaptadas a cada situação. É uma coisa que não é comum. Normalmente olha-se para a cidade toda da mesma forma. As cidades são feitas de partes diferentes.
Que maus exemplos identifica no território?
O Porto tem neste momento dois ou três problemas a nível morfológico importantes. Primeiro a questão do centro histórico. Com a Sociedade de Reabilitação Urbana as regras do jogo mudaram e o PDM perdeu força na área central. O que está a acontecer no centro histórico do Porto é algo que me preocupa. No concelho, 1,7 por cento do território corresponde a áreas mais históricas, muitas delas património da humanidade. Num território tão reduzido a nossa preocupação máxima devia ser com conservação. O que acontece neste momento na Baixa do Porto, na zona da ribeira, é que as intervenções traduzem-se quase sempre numa manutenção da fachada e na demolição de tudo o que está por detrás. Quer da fachada das traseiras, que das lajes de piso, quer dos acessos verticais. No final chama-se a isto reabilitação, o que para mim é muito pouco. É tratar da aparência. Destruir a história urbana. Quando aquele território desaparecer deixamos de ter o Porto do século XVIII e XIX. É um trabalho feito pelos privados mas a SRU não têm sensibilidade para perceber que não é o caminho.
Mas os privados não terão nesta conjuntura possibilidade para avançar para a reabilitação total…
A boa reabilitação é mais cara que a construção nova… Isso é inegável. Mas temos que ter consciência de que aquele recurso que temos ali acaba. Não queria ter aqui uma Veneza, uma cidade congelada no tempo, mas naquele tesouro a preocupação fundamental devia ser a conservação. Todos devíamos ser mais activos e sensibilizar a sociedade para aquilo que está em causa.
Inevitavelmente a reabilitação será a tendência no nosso país?
Em muitos casos sim. E aí não só a reabilitação dos espaços históricos. Como vimos, a partir da segunda metade do século XX fomos perdendo qualidade do espaço urbano. Esses territórios, alguns deles, apresentam problemas que devem merecer a nossa atenção por isso a reabilitação no sentido alargado tem todo o espaço para acontecer.
É PRECISO MISTURAR OS USOS DO SOLO
Que tipo de problemas?
Há uma série de espaços aqui no Porto que são monofuncionais. É o caso do sítio onde nos encontramos [zona universitária do Porto, pólo da Asprela]. Algumas partes do Porto têm residências e não têm mais nada. Esta é marcada essencialmente pela presença de equipamentos de ensino universitário. No Verão, aos fins-de-semana e à noite falta vida urbana a esta zona. Naturalmente isso tem problemas associados ao nível da segurança. Além do esvaziar da função residencial. Para agravar tudo isto, quarteirões de toda esta zona têm uma dimensão excessiva. O quarteirão do Hospital de São João tem 200 mil metros quadrados. Neste quarteirão cabiam 12 quarteirões nova-iorquinos. Isto traduz-se num imenso vazio.
O que há a fazer?
Tínhamos que misturar residência aqui porque as partes da cidade que vivem só de uma função não têm verdadeiramente vida urbana. Outro ponto que me parece também frágil em alguns territórios tem que ver com alguma segregação espacial de algumas partes da cidade. Há partes da cidade que, pela forma como o sistema de ruas está organizado, pela forma como se articulam, ficam completamente fora do jogo urbano. Em Lisboa o caso mais evidente será Chelas. Aqui no Porto é a freguesia de Campanhã. A forma das ruas impede a verdadeira integração espacial dos bairros que se vão construindo. Essa falta de integração baixa a acessibilidade urbana de alguns residentes que já têm algumas vulnerabilidades. Nem toda a gente tem carro. Tudo isso faz com que aquele espaço fique segregado. Não só espacialmente mas também socialmente. Por isso é provável que esses espaços tenham problemas sociais.
Então na cidade ideal não teríamos uma cidade universitária, um pólo hospitalar.. Teríamos equipamentos integrados?
Sim, é possível fazer isso bem. Nova Iorque tem uma malha muito regular de ruas e avenidas. Os quarteirões são pequenos. Isto à partida poderia parecer adequado para residências, serviços, escritórios, e não parecer adequado, por exemplo, para um equipamento universitário, como este pólo, mas a verdade é que os equipamentos universitários em Nova Iorque encaixam perfeitamente nesta malha. É uma questão de ter vontade e ter alguma criatividade.
Mas as nossas ruas não são assim tão arrumadinhas…
Também não precisavam de ser. Uma cidade ideal não tem que ser assim. É possível encontrar outros modos de organização. Temos que voltar a ter mistura nas cidades. As cidades do século XVIII e XIX tinham mistura. No século XX passámos a achar que era melhor separar as funções. Se calhar isso tem mais desvantagens que vantagens.
Outras coisas que devem ter as cidades perfeitas?
Acho que não há propriamente cidades perfeitas. Essa ideia pode levar-nos a achar que todos devemos convergir para um modelo único. Em morfologia urbana valoriza-se muito a diversidade. Podemos encontrar boas cidades com as formas mais diversas. Temos é que ser capazes de perceber em cada um dos casos, com teorias, conceitos e técnicas eficazes, o que é que funciona bem e o que funciona mal e do lado da morfologia urbana dar algumas pistas para melhorar aquilo que não está assim tão bem.
Em termos de mobilidade a tendência será a de que os centros históricos fiquem sem carros e que as pessoas passem a circular a pé e de bicicleta?
A dada altura achou-se que seria desejável a pedonalização. No Porto a Rua de Santa Catarina é um exemplo que funciona bem. Em Matosinhos, mesmo aqui ao lado, a mesma tentativa de pedonalização já não teve tanto sucesso. Os comerciantes queixam-se de que isso reduziu o volume comercial. Depois do Porto 2001 a Praça da Batalha passou a dar mais espaço ao peão e o carro passou a ter apenas uma faixa e a partilhá-la com transporte público. A eliminação completa do carro pode não ser a melhor opção. Podemos não ter que escolher entre o branco e o preto. Pode haver vários graus de cinzento: colocar uma ciclovia ou eventualmente introduzir o eléctrico dependendo de cada situação.
Como é que idealiza a morfologia das principais cidades daqui a uns anos?
Adivinhar como serão as cidades do futuro é difícil. A morfologia urbana é uma ciência com mais de um século mas re-emergiu nos anos 80 com a questão da sustentabilidade. Todas as cidades do futuro terão que estar atentas às questões ambientais. As escolhas que faço - ir morar para uma parte da cidade mais consolidada ou ir morar para uma área mais periférica - têm implicações na energia que vou consumir e na dependência do automóvel. Apesar de não conseguirmos prever as formas do futuro conseguimos perceber as preocupações subjacentes.
Ainda há lugar para construção nova?
Sim. Há uma série de tecidos urbanos que foram feitos nos últimos 50 anos que para serem espaços com maior qualidade urbana, em alguns casos, ganhariam em ter mais construção. Obviamente que isto não é verdade para todos os casos. Banir completamente a construção pode não ser uma boa opção.
Não é um adepto incondicional da reabilitação…
Vejo isto como reabilitação. Não propriamente reabilitação arquitectónica, mas de uma área. Posso encontrar uma área em que tenho uma série de edifícios sem grandes relações uns com os outros. Para melhorar a urbanidade dessa área posso ter que fazer mais construção.
Fará sentido apostar em nova habitação quando há tantos fogos, alguns vazios?
O erro não foi construir. Foi construir em determinados sítios.Por exemplo, construiu-se habitação em excesso em sítios com fraca acessibilidade urbana. A longo prazo, com o dinheiro que esses residentes iriam gastar em transportes, seria uma má opção. Provavelmente foi por isso que muitos ficaram vazios…
PORTO RECEBE CONFERÊNCIA INTERNACIONAL
Coordena a organização do 21º International Seminar on Urban Form - ISUF (Seminário Internacional de Morfologia Urbana) que vai este ano pela primeira vez decorrer em Portugal [de 3 a 6 de Julho, na Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto]. Quais são as expectativas?
São elevadíssimas. Há três anos eu e alguns colegas criámos uma rede portuguesa de morfologia urbana ligada ao ISUF. Ao longo destes anos temos promovido a morfologia urbana quer em Portugal quer no Brasil. Entretanto, surgiu a hipótese de organizar a conferência e fizemos uma candidatura que foi bem aceite. Pelos dados que temos esta pode vir a ser a maior de sempre, o que seria duplo motivo de orgulho. A maior conferência até hoje foi feita no Brasil em 2007 com 310 apresentações.
A logística é complexa…
Temos um conjunto de sessões plenárias e uma série de sessões paralelas a ocupar entre oito a dez salas.
Quais serão os principais temas?
Serão muitas as apresentações que analisarão a evolução da fórmula urbana de uma cidade. Outro tema será o da multidisciplinaridade que se relaciona com o título da conferência: «Our Common Future in Urban Morphology» que vai buscar a questão ambiental. Este interesse renovado pela morfologia urbana surgiu com a questão da sustentabilidade. Um terceiro tema fundamental relaciona-se com os diversos actores urbanos. Nesta conferência vamos apresentar casos de estudo que têm vindo a ser realizados em diferentes partes do mundo, ao longo do último ano e meio, o que pode dar pistas aos profissionais de planeamento.
Quantos participantes esperam?
Temos cerca de 400 submissões aceites de 60 países. No entanto, haverá certamente desistências. Alguns destes autores poderão não vir porque é difícil sair dos seus países de origem (do Irão, da Nigéria, ou do Egipto…).
Ana Santiago