Era uma noite normal daquele fim de Inverno de 2014; era normal, ou parecia, porque ao início da madrugada, um violento incêndio deflagrou e consumiu quase completamente um edifício na Rua Rodrigo da Fonseca, em Lisboa, que se encontrava na fase final da sua reabilitação integral.
Prédio "enguiçado" aquele, ao qual maleitas e azares não deixaram de suceder desde a sua construção, em 1910: alterações introduzidas sem os necessários cuidados, defeitos próprios da construção gaioleira do princípio do século XX, assentamentos, deformações e fendilhações, e até um bombardeamento, impuseram campanhas de reforços estruturais capazes de garantir a segurança de um edifício repleto de programas decorativos, da pintura à azulejaria e aos vitrais que embelezavam a sua fachada principal.
Projecto custoso de desenvolver e de pôr em prática, no sentido de preservar a sua essência construtiva e a sua identidade arquitectónica e decorativa, já tinha passado o tempo das preocupações maiores e vislumbrava-se o futuro próximo da conclusão de apartamentos únicos, modernizados mas com fortes memórias do seu tempo próprio.
Em meia dúzia de horas, o incêndio devastou quase tudo, o novo e o velho, a abundância de madeira justificava a elevada carga térmica, sobraram, maltratadas, as paredes periféricas de alvenaria e a robusta estrutura do rés-do-chão, sobre cuja laje de tecto se foram amontoando os destroços de madeira queimada, de ferro e de alvenaria.
Perante a intensidade do sinistro, que muita gente observou na noite lisboeta, logo havia quem condenasse o edifício à demolição integral do remanescente, tão provável era que ele estivesse irremediavelmente afectado e sem hipótese de recuperação.
Para esta opinião imediata e simplista havia duas objecções: por um lado, era necessário ter algum tempo para observar os destroços e a construção sobrevivente; por outro lado, demolir tudo, incluindo fachadas implicava a perda de um importante valor decorativo e, ainda, o risco de se perder área de construção, face à grande profundidade do lote.
A observação do edifício, difícil em virtude das condições objectivas, mas minuciosa, permitiu concluir que a estrutura do rés-do-chão tinha suportado com galhardia a prova a que tinha sido submetida, não se pondo em causa a sua preservação; quanto às paredes periféricas anotavam-se grandes danos nas paredes do saguão Sul e em algumas zonas da empena norte e das fachadas principal e posterior, mas não de molde a impedir a sua preservação, reparação e reforço, com excepção das referidas paredes do saguão, cuja demolição foi proposta.
Partiu-se então para uma nova etapa da história do martirizado edifício, não se ponderando sequer a retoma do projecto existente, que deixara de fazer sentido, mudando radicalmente a lógica projectual, na arquitectura e nas engenharias, designadamente nas novas estruturas, as quais abandonaram a madeira, a favor do betão e do aço.
Foi uma reviravolta profunda que gerou, naturalmente, reservas iniciais e pontos de interrogação dos promotores, perante algumas propostas mais arrojadas da arquitectura; vencidos esses receios iniciais, realizados e observados diferentes testes, desenhos e "maquetes", os projectos foram aprovados e avançaram a todo o vapor, enquanto decorria o processo de remoção de escombros, demolição de elementos instáveis e trabalhos de consolidação e estabilização das estruturas remanescentes.
Passados pouco mais de dois anos, com toda a gente a trabalhar afincadamente como uma equipa homogénea e entusiástica, o edifício da Rua Rodrigo da Fonseca está pronto, na sua nova versão, está bem e recomenda-se sendo, na verdade, um êxito assinalável de todos os pontos de vista, incluindo o sucesso imobiliário.
Estão satisfeitos os projectistas e o construtor, a fiscalização e o promotor, que mais se poderia desejar?
Tudo está bem quando acaba bem (all's well that ends well - William Shakespeare), não é verdade?
P.S. O edifício tem sido objecto de numerosas visitas, de potenciais compradores e de técnicos, especialmente arquitectos, com notável sucesso. Por que não dar uma espreitadela? Aqui fica o convite-desafio ao leitor
João Appleton, é engenheiro civil (IST), especialista e investigador coordenador pelo LNEC, conselheiro do Conselho Superior de Obras Públicas e Transportes (aposentado) e sócio da A2P- Estudos e Projectos.