Anda aí a Internet das Coisas a anunciar cidades inteligentes e outras racionalidades que ora parecem muito sérias, ora parecem saídas do delírio dos informáticos a imaginar coisas e comportamentos que não passam pela cabeça de ninguém escorreito. O certo é que sendo coisa de IBM, Cisco ou Siemens e outros impérios do capital, a big data, como lhe chamam é big business, continuando a usar o acordo ortográfico do inglesing. O povo desconfia dos sistemas inteligentes que lhe organizam a vida a partir de um centro de comando com objectivos e negócios mais ou menos inconfessáveis e que, para justificar as suas decisões, diz que são as razões técnicas e as racionalidades abstractas que legitimam tais coisas. Não são; funcionam por critérios, valores ou prioridades politicamente discutíveis mesmo que indiscerníveis como o ambiente e outras coisas que não existem.
Sem dispositivos móveis com sensores, processadores e transmissores, sem internet, rede sem fios e banda larga, Jean Baudrillard escreveu em tempos um livro sobre o Sistema dos Objectos[1] para organizar a discussão entre o que se diz que os objectos são de um ponto de vista estritamente técnico e o que são desligados dessas conotações olhando à diversidade de formas de apropriação, uso e significação dentro de um determinado contexto cultural. Assim, no primeiro caso, cada objecto é caracterizado, normalizado, codificado segundo as suas especificidades ditas técnicas, funcionalidades e modos de utilização. Estará tudo no manual de instruções. No entanto, quando alguém se suicida mergulhando um secador de cabelo em funcionamento na água da banheira, está com sérios problemas que não devem ter muito a ver com a capacidade do secador produzir brisas quentes.
Com ou sem dramas, os objectos, a forma como são vividos, estão constantemente a desligar-se do seu entendimento e da sua existência estritamente técnica, como se o manual de instruções tivesse enlouquecido ou uma mente perversa investisse todo o seu saber e ofício em distorcer ou perverter os usos recomendados como quem tritura pensamentos com a varinha mágica.
Objectos multi-funções como um telefone inteligente (mais mágico do que as varinhas) servirão para uma infinidade de coisas e nisso se distinguem claramente de outras gerações de objectos com funcionalidades muito rigidamente definidas e estabilizadas. Quantas mais funcionalidades, mais modos de usar e menor capacidade de prever acontecimentos.
Quando Paul Virilio se lembrou de estudar e relação entre tecnologia e acidente – quem inventou a locomotiva, sem saber, tinha inventado o descarrilamento[2] -, tocou nesta dimensão assustadora e fascinante que nos prende: assustadora pelo seu potencial de produção de destruição e infelicidade; fascinante pelo que o acidente tem de imprevisível ou inesperado que também pode ocorrer no bom sentido. Serendipity, uma palavra inventada pelo criador do romance gótico, Horace Walpole (1754), pode ser o motor da inovação ao designar algo que alguém conseguiu descobrir quando se procurava uma outra coisa, construindo relações de sentido onde outros não viam senão ocorrências casuísticas ou, simplesmente, nada.
A mesma Internet das Coisas (haverá também a dos animais) que processa paletes de dados sobre fluxos de tráfego para nos avisar de um engarrafamento que ainda não aconteceu, também pode pôr estes objectos em relação por telepatia electrónica. Vejamos.
Esta colecção de coisas aqui na Rua da Estrada tem a especial característica de se ter tornado obsoleta segundo os parâmetros do seu regime técnico de existência, isto é, o aquecedor deixou de aquecer, ou, numa versão ligeiramente diferente: esta casa do correio continua funcional mas foi preterida por outras soluções como uma caixa metálica embutida numa porta ou um endereço de correio electrónico. Mais para o extremo da foto, os objectos ou seus despojos já estão próximos da categoria lixo, um palavrão usado pelas empresas de avaliação de risco de crédito. Nunca se sabe porque essas empresas são parte interessada na indústria do crédito, do lixo e do dinheiro.
Imagino redes e miscelâneas de redes sem fios, imagino sensores, transmissores, aplicações, automatismos, banda larga, redes locais, outras ubíquas, de acesso livre, condicionado, rígidas, interactivas, públicas, privadas, baratas, caras.., tudo em grande cacofonia, umas para monitorizar a rede eléctrica, outras para o dióxido de carbono, outras para o refluxo do esgoto nos sifões, outras para detectar o cheiro a estrugido, outras o calor das carnes, outras que activam um bando de drones que borrifa uma nuvem de gotículas frescas quando os detectores do calor disparam, outras que bloqueiam a porta da casa de banho quando o esgoto entope o sifão e assim.
A Internet das Coisas Inúteis vai comandar estes três aquecedores na sua deambulação pelo asfalto, os três barris de cerveja a rolar em linha, o garrafão no engarrafamento e a bicicleta na cabeça infantil dos que mudam o mundo e derretem dinheiro público a pregar ciclovias, ciclistas e modos suaves de nos manterem entretidos. Para a bilha com fecho hermético, essa sim, seguirá uma aplicação para sequestrar carbono e pedir choruda recompensa pela libertação depois do sequestro. A casa irá para o campo, claro, e a balança pesará as consequências disto tudo.
[1] Jean Baudrillard (1968), Le Système des objets, Paris: Gallimard
[2] Paul Virilio (1999), Politics of the Very Worst, New York: Semiotext(e).
Álvaro Domingues é licenciado em geografia, doutorado em Geografia Humana e professor e investigador na Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto.
Outros artigos do autor em:
http://www.correiodoporto.pt/category/rua-da-estrada
http://juponline.pt/2016/05/crise-de-identidade/