Vai muito barulho na ilha por causa da paisagem. Como se vê de todo o lado, a paisagem é coisa muito exposta a conversas e discussões assim como o tempo, o frio, as névoas e o vento. Como a paisagem pode ser praticamente tudo o que se pode paisagificar, também se pode meter lá qualquer assunto.
Pelo grande que são e o muito dinheiro que custaram, os túneis, viadutos e vias rápidas ocupam muito espaço nas conversas da paisagem. São muito práticos, no entanto. A ilha é toda aos refegos, tudo dobrado de vale em vale e de ribeira em ribeira, do rebentar da onda até ao Paúl da Serra onde, finalmente, aplana entre névoas e friagens.
A Madeira é muito montuosa e pedregosa, como escrevia Gaspar Frutuoso lá pelos anos oitenta de mil e quinhentos. Por isso os primeiros colonos lhe deitaram fogo e demoradamente ardeu antes que pudessem arrotear a terra e fazer casas e caminhos.
Por tais razões esta terra é um tratado de engenho e artifício. Pela bondade do clima e pelo preço que o açúcar dava, socalcaram-se as encostas até ao impossível, poio sobre poio, milhões de toneladas de terra protegidas pelos muros até ao cimo das escarpas e abismos das fajãs.
Depois foi preciso explorar água e construir quilómetros de levadas por túneis e aquedutos até que todo este escadório de cultivos tivesse rega. A reprodução dos socalcos provocou o milagre da multiplicação dos caminhos, das veredas e das escadas e o casario trepava pelos lombos das encostas e encastrava-se na cascata.
Dos degraus das escadas aos túneis ou viadutos, a história vai pelo mesmo libreto. Mudaram as tecnologias, os materiais e as finalidades mas segue o desafio de vencer obstáculos - naturalia e artificialia juntas para tornar a vida possível.
Admiramo-nos, porém, com a simultaneidade das coisas: as levadas e as canalizações; a gravidade e o sifão; os caminhos e as vias rápidas; o basalto e o betão; os muros e as muralhas; e sempre as superfícies artificiais, varandas ou viadutos, pilares e pilaretes, pistas de aeroporto, degraus pequenos e escadórios ciclópicos.
Que a Nossa Senhora do Monte proteja este jardim do aluvião. Das entranhas da terra, acelerando sobre os viadutos, descendo às velhas estradas, caminhando pelas levadas, levitando no teleférico, percebe-se a relatividade do espaço-tempo como explicou Einstein que nunca comeu bolo do caco nem conheceu o campo gravitacional da poncha.
Álvaro Domingues é licenciado em geografia, doutorado em Geografia Humana e professor e investigador na Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto.