Conta Umberto Eco no seu ensaio “Kant e o ornitorrinco” (1997) que quando Marco Polo viu um rinoceronte na ilha de Java o descreveu como um unicórnio, e, apesar de reconhecer que não era nada assim tão fantástico como constava do conhecimento que então se tinha dos unicórnios – besta feroz mas que se amansa à vista dos peitos das donzelas -, descreve o animal, quadrúpede e com um chifre, como se fosse de facto esse espantoso cavalo saído da maquinaria mágica do terrificante e do maravilhoso – deste unicórnio de Java, as donzelas fugiriam a sete pés.
De facto, Kant nunca viu um ornitorrinco porque a vida escapou ao filósofo antes de ter chegado à Europa, dissecado, um exemplar de tão estranho animal (1799). Apesar disso, Umberto Eco escreve que a razão pura da ciência que Kant tanto apreciou na física de Newton ou na matemática, ter-se-ia bloqueado ao procurar enquadrar a bicheza na (julgada) claríssima taxionomia zoológica de então. Assim foi. O ornitorrinco andaria quase cem anos em discussão: tão estranho ser que amamentava as crias, nascia de um ovo, tinha cauda de castor e uma espécie de bico de pato, entre outros bio-adereços, só poderia ser um embuste, uma incongruência face ao esquema que existia para o seu entendimento. Ovos, caudas, bicos, mamas…, eram nomes, categorias cognitivas, palavras para comunicar e sentidos que estavam bastante organizados, tanto no conhecimento comum, como no conhecimento científico e técnico; misturados e recombinados numa coisa nova e desconhecida, é que não – a perplexidade ultrapassava os limites da fantasia e da racionalidade.
Na crítica da racionalidade tecno-fantástica que se cristalizou em muitas cabeças, a realidade surpreendida por esta fotografia é um ornitorrinco também: existe, pode-se (com dificuldade) descrever em cada um das suas partes, mas não é compreensível. Só por isso, será também inadmissível por ser um todo composto irracionalmente por fragmentos de outros.
Será? É melhor pensar que não. Por exercícios de desconstrução de baixo para cima, facilmente se chegará a explicações sobre o que é a produção agrícola em estufas, os painéis solares, as casa, os celeiros, os socalcos, os muros, as vinhas ou as fábricas. Pode-se até explicar porque é que tudo aparece aqui em simultâneo e traçar uma genealogia de cada coisa e de como se foram juntando.
Depois desse esforço até deixar o adversário exausto, far-se-á luz na primeira lâmpada do entendimento do mundo.
Não será o bastante. Depois, terá que ser demonstrado porque é que o novo entendimento é legítimo e inteligível (e não uma espécie de perversão daquilo que “devia ser”).
Para apressar o processo… uma pergunta – é preciso acabar com a realidade dos ornitorrincos ou com o planeamento e o ordenamento do território que insiste em não entender bicos, ovos, mamíferos, aves, répteis… fora das suas crenças? É muito mau porque ainda por cima, e contrariamente à (bio)diversidade da taxionomia zoológica, o ordenamento teima em meter tudo em muito poucas categorias para organizar a realidade – rural ou urbano, são as mais insistentemente marteladas.
É por isso que as donzelas se assustam e fogem cada vez mais deste animal.
Álvaro Domingues é licenciado em geografia, doutorado em Geografia Humana e professor e investigador na Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto.
Outros artigos do autor em:
http://www.correiodoporto.pt/category/rua-da-estrada
http://juponline.pt/2016/05/crise-de-identidade/