Uma escola para Moçambique feita de terra e betão que é «um luxo»

Entrevista: Maria Alvim é uma das mentoras do projecto «Terra a Terra»

01.07.2014

Duas arquitectas – Maria Alvim e Madalena Caiado – querem ajudar a erguer um centro de dia para crianças órfãs da Beira, Moçambique, construído à base de terra e betão. O projecto está pronto e 30 por cento do custo da obra está quase garantido. O centro, orçado em 160 mil euros, está projectado para 234 crianças e será feito com o apoio financeiro e logístico de empresas, voluntários portugueses e mão-de-obra local. O Jornal Arquitecturas entrevistou a arquitecta Maria Alvim, uma das mentoras do projecto «Terra a Terra», que conta com a colaboração da organização «Padrinhos de Portugal». Todo o apoio é bem-vindo para que estas mulheres e homens de boa vontade possam deitar mãos à obra.

 

Como surgiu a ideia de criar o projecto «Terra a Terra?

O projecto «Terra a Terra» começou há dois anos com uma viagem à Índia de duas amigas e com um pedido de ajuda local de um indiano para desenvolver uma escola na sua aldeia. Na altura a resposta foi dada em maquete de uma maneira um pouco tosca. Tínhamos vontade, como arquitectas [Maria Alvim e Madalena Caiado], de fazer um projecto de voluntariado que estivesse ligado a um tipo de construção sustentável, que era uma área que nos interessava. Ficámos com esse bichinho. O mais difícil foi arranjar parcerias porque a Índia é muito grande e tínhamos fraco conhecimento de organizações locais e da sua legitimidade. Foi então que um padrinho da ONGD (Organização Não Governamental para o Desenvolvimento) «Padrinhos de Portugal», nos falou de um projecto em andamento em Moçambique com 600 crianças acompanhadas. Um dos centros tinha umas condições perfeitamente miseráveis. Já havia um terreno doado para a construção do centro. Optámos por deixar o projecto da Índia para mais tarde, porque não é tão urgente, e começámos a desenvolver o projecto em Moçambique há um ano.

 

São projectos semelhantes?

Semelhantes no sentido em que pretendemos que o tipo de construção seja idêntico. Seria também para crianças e seria também uma escola. Em Moçambique é um centro de dia mas tem salas de aula. Formalmente o programa de arquitectura é muito parecido. Foi por causa do projecto da Índia que começou a questão de usar a terra para construir. Naquela zona a terra é boa para construção. É bastante argilosa. Dado que não há meios para transportar muito material a ideia era usar materiais locais e pôr a comunidade a construir a escola. Começámos a aprofundar o tema da taipa, com o exemplo que temos cá em Portugal, de todo o Alentejo e Algarve. A ideia é tentar levar esse conhecimento para lá para que depois, não só as aldeias vizinhas possam usufruir da escola, como aprender e replicar esse conhecimento.

 

No fundo é esse mesmo princípio que estão a tentar implementar em Moçambique. O projecto engloba também essa técnica…

Neste caso, quando lá estivemos no ano passado, fomos precisamente pôr na projecto à câmara, perceber as condições do terreno, perceber o clima de perto, conhecer a comunidade e começar a fazer a abordagem que os leve a comprometerem-se e a sentirem-se parte deste projecto. Fizemos uma pequena festa e convidámos os familiares das crianças. As crianças são órfãs, ou de pai, ou de mãe ou dos dois, mas dormem sempre em casa de um familiar. Até porque isto é um centro de dia. Os Padrinhos de Portugal comandam as associações locais moçambicanas que fazem o trabalho no terreno. Aquando da nossa viagem a Moçambique ficámos em casa da líder desse grupo, na Beira. Conseguimos a nossa representação local através de um engenheiro que é português e que licenciou o projecto.

 

Em que fase é que está o projecto?

Neste momento o projecto está no município. Aguardamos a qualquer momento que a licença seja emitida. Tivemos um período de procura de financiamento que não teve ainda os resultados que pretendíamos porque no fim do ano passado houve alguma instabilidade política lá. Agora começamos a sentir alguma abertura das empresas para o financiamento. Muitos dos portugueses que lá estão têm raízes lá e viveram lá parte da vida. Há situações miseráveis e as empresas estão sensibilizadas para isto. Foi um descanso perceber isso. É muito possível que na fase de construção que apareçam para ajudar. Temos esperança de nos próximos dois meses garantir 30 por cento do financiamento para o centro.

 

A fase de construção estava prevista para Março mas ainda não se iniciou…

Acho que vamos ter que adiar a fase de construção um ano. Isto porque há fases específicas para a construção. Há períodos de chuva muito grandes e nessa altura pára tudo completamente. Poderemos, eventualmente, ter que pagar taxas para uma prorrogação de prazo.

 

Quais foram as maiores dificuldades que sentiram?

Para já a crise que se está a viver cá, que dificulta logo muito a recepção a este tipo de projectos e depois, do ponto de vista de um arquitecto, este é um tipo de trabalho novo. Nem a Madalena nem eu tínhamos montado nada deste estilo e portanto há aqui todo um caminho que nos era desconhecido. Foi preciso aprender com os erros. Hoje em dia já conseguimos perceber que para um projecto desta dimensão provavelmente a estratégia de financiamento será uma espécie de mecenato de cinco ou seis empresas com um bolo de trinta mil euros cada uma. No próximo projecto vamos atalhar caminho. Depois o facto de estarmos associadas a uma ONGD implica muito esforço de compatibilização apesar das boas relações que temos. O desejável seria no futuro sermos uma associação e conquistarmos alguma autonomia. A grande dificuldade é também o facto de sermos arquitectas.

 

Porquê?

As coisas cá não estão fáceis. Eu trabalho por conta própria com um irmão, arquitecto também. A Madalena trabalha num atelier. É muito trabalho para pouca facturação e um desgaste de tempo muito grande. Continuar a manter a energia certa para fazer um projecto destes acontecer é difícil.

 

Como é que sobra tempo?

Na altura em que começámos eu estava sem trabalho. A Madalena e eu conhecemo-nos como monitoras de acampamentos que fazíamos com crianças. Já havia o bichinho do querer estar no terreno, do querer ajudar. Isto foi uma maneira de colocarmos isto em sintonia com a nossa profissão. Começámos por aí, na altura cheias de entusiasmo. Esse entusiasmo continua de uma maneira amadurecida. Os voluntários também foram aparecendo. Temos actualmente sete, entre cenógrafos, engenheiros, arquitectos e gestores. Esta equipa reúne uma vez por semana. Todos tentamos conseguir financiamento para o projecto e para as viagens através de festas e leilões.

  

«HÁ POUCA INFORMAÇÃO SOBRE CONSTRUÇÃO EM TERRA»

 

Onde se documentaram sobre arquitectura de terra?

A nível profissional há pouca informação sobre construção em terra. Quando abrimos essa porta começámos a perceber que há muitos workshops e seminários e pouco sobre concretização no terreno. Acabámos por entrar em contacto com associações que já existiam, ligadas a este tipo de construção, fomos a seminários, fizemos contactos com vários arquitectos, nomeadamente com o arquitecto Henrique Schreck, que é um dos gurus da arquitectura de terra em Portugal, fizemos um curso de taipa [parede feita com terra argilosa que é lançada nos taipais], quisemos acompanhar obra para meter a mão na massa e aprender. Estivemos em Aljezur de maço na mão. Quisemos começar a perceber quantos taipais se fazem por dia, quantas equipas é possível ter a funcionar em simultâneo e como é que se orienta depois uma obra destas.

 

O vosso objectivo é também arranjar mão-de-obra voluntária para concretizar a obra.

O objectivo é que, quando nos deslocarmos para lá, os voluntários liderem pequenas equipas. A parte da taipa tem este encanto. Há uma parte mínima especializada, que tem que se aprender. É isso que pretendemos levar para lá. Depois é muito fácil dar um maço a uma pessoa e explicar qual é a sensação de compactação da terra que se procura e pôr a obra a começar a funcionar.

 

Acham que será possível edificar aquele centro com mão-de-obra voluntária?

Não será só à base disso. Temos a obra faseada. Primeiro será feito o aterro do terreno, a parte de infra-estruturas, saneamento e a parte da estrutura porque a taipa não pode estar assente no chão. Não pode apanhar água, nem por baixo nem por cima. Tem que ter uma espécie de fundação que vem a 80 centímetros de altura à superfície onde então é montado o taipal e se começa a construir em taipa. Essa primeira fase será executada por um empreiteiro local. A parte da taipa será construída com a comunidade orientada pelos voluntários. O nosso projecto tem uma malha numa direcção que são as paredes de taipa propriamente ditas que dão a estrutura à escola e que estão orientadas de maneira a que nos topos tenhamos umas paredes leves em caniço. Têm também lá muitas estacas, muitos mangais, e usam isso muito para a construção. O objectivo era utilizar as técnicas de lá e pôr o saber-fazer deles a nosso favor. A escola está orientada de maneira a ventilar o mais possível.

 

Como vão resolver o problema das cheias?

Cá em Portugal a base que é feita em pedra, alvenaria ou betão teria à volta de 30 ou 40 centímetros de altura. Estamos a tentar perceber com o engenheiro de lá, que conhece a realidade, qual será que é a cota a que terá que vir esse muro para garantir que a água não chega à parte da terra. Neste momento estamos com uns 80 centímetros à superfície. O nível freático na Beira é muito alto e a cidade é muito plana, o que a torna alagadiça sobretudo por causa das chuvas.

 

Por que razão optaram pela taipa? Foi uma questão de reduzir os custos ou preocupação com o enquadramento paisagístico?

É aquilo que eles já estão habituados a fazer. Não têm recursos e portanto ir buscar terra para construir qualquer coisa é um processo natural. Apesar de isso implicar ainda transporte. Outro dos objectivos era que a escola não ficasse cara. Tínhamos sempre a possibilidade de fazer qualquer coisa em tijolos de cimento mas era muito importante o envolvimento da comunidade. Vamos construir a escola com 160 mil euros. O centro está projectado para 234 crianças. Os padrinhos doam 95 euros trimestrais para cada criança. Não podem trazer cá as crianças mas podem escrever cartas, interagir e ir lá visitá-las. É uma espécie de adopção à distância.

 

Isto leva-a a pensar no desperdício que é gastar milhões a construir escolas noutros pontos do mundo?

Aquilo que vimos no terreno é meia dúzia de estacas com umas folhas de palmeira por cima, uma espécie de uma casa de banho sem água canalizada e que tem um lavatório sem torneira. Quando percebemos que, mesmo assim, as crianças são bem orientadas, têm amor e carinho e acompanhamento médico é fantástico. Aquela associação faz um trabalho incrível. Quando a vida se processa num nível tão básico esta escola para eles é um luxo. Tudo é uma questão de escala e de cultura. Aquilo que para nós parece desperdício para outros parece essencial. A nova escola terá uma função de concentração importante. A vivência no bairro vai desconcentrando as crianças daquilo que deveriam e poderiam estará a fazer. Aparecem pessoas mais velhas que os aliciam para trabalho sujo e que lhes dão uns trocos. Passar o tempo no centro só tem vantagens.

 

Por que é que academicamente estas técnicas não são valorizadas?

A perspectiva sobre este tipo de técnica de construção é sempre associada a qualquer coisa rudimentar, qualquer coisa de aldeia e tem um problema associado que o mundo ocidental não gosta muito: é a questão da manutenção. As pessoas hoje em dia esquecem-se que as coisas têm que ser mantidas. Tudo é muito descartável e este tipo de construção exige uma certa manutenção.

 

De que forma?

No caso da escola vamos precisar de deixar algumas premissas de alguns cuidados a ter, provavelmente anuais, em relação ao revestimento das paredes. Temos exemplo de taipa milenar, mas não pode apanhar água nem por capilaridade nem pelo topo. Temos que deixar a associação preparada para perceber que se estiver a chover num determinado sítio ou se por alguma razão a cobertura levantar, rapidamente isso tem que resolver-se. Cá em Portugal caiam-se as casas. Lá também se vai ter que manter uma fachada. Há algum trabalho de pesquisa a fazer sobre a resina e reboco a utilizar para que deixemos a regras bem definidas. Por outro lado este tipo de arquitectura tradicional, tem algumas limitações do ponto de vista formal. Há aqui toda uma plasticidade que se conseguiu ganhar com o betão que nos viciou. Faz sentido construir em terra quando há terra. No Algarve e no Alentejo isso existe muito. O período de crise que atravessamos também põe as pessoas a pensar e a reflectir sobre os próprios recursos. Um país rico em argila, pelo menos na zona sul, pode aproveitar isso.

 

Acha que poderá haver mais interesse sobre esta técnica para construir casas mais baratas?

Acho que sim. Temos o exemplo do México e da Austrália que são muito ricos em boa terra. Da mesma maneira que se procura um certo regresso à saúde e aos produtos biológicos, há uma espécie de luxo que começa a ser associado à saúde e à sustentabilidade. Digo saúde porque uma parede em taipa é mais saudável do que outras. Tem um teor de humidade permanente.

 

Nesse contexto seria depois possível combater os lobbies do betão?

Há poucos construtores a trabalhar a terra em Portugal. Os preços acabam por ser os mesmos da construção corrente. Aquilo que se ganha no material é imputado em mão de obra ou no facto de serem especializados. Temos um exemplo muito bonito de uma obra contemporânea em terra de Bartolomeu Costa Cabral no Alentejo. Vale a pena inspirar os futuros arquitectos.

 

Depois deste projecto tornou-se uma arquitecta diferente?

Quando a pessoa se amplia como pessoa isso acaba inevitavelmente por se reflectir de alguma maneira naquilo que projectamos no dia-a-dia. É-me difícil ter distanciamento para perceber essas modificações, que são às vezes crescimentos que nós não percebemos porque estamos dentro deles. Acredito e espero que sim. A mim e a todos os voluntários. Espero que essa experiência nos traga uma observação mais «Terra a Terra».

 

Ana Santiago

 

(Projecto Terra a Terra:

Fundadoras - Maria Alvim e Madalena Caiado

Voluntários actuais - Luísa Castro Almeida, João Tondela, Marco Serra, Catarina Vaz Bragança, Duarte Vieira)

TAGS: arquitectura de terra , projecto Terra a Terra , Maria Alvim e Madalena Caiado , centro de dia Beira Moçambique
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