Editorial de João Pedro Costa: "O produto tóxico"

25.01.2016

Escrevo este editorial a uma sexta-feira, porque, desta vez, vou vencer o mau hábito de trabalhar ao fim-de-semana e aproveitar o sábado para passar o dia com amigos.

 

Onde? Num produto tóxico!

 

Deformação profissional? Interesse jornalístico? Síndroma de PhD (Premanent Head Damage)? Não.

 

Não vamos visitar a Lagoa da Palmeira, para quem não conheça um antigo braço do estuário do Rio Coina, localizado nos terrenos da Siderurgia, junto à aldeia de Paio Pires, no Seixal, contaminada por décadas de deposição de efluentes industriais e das lamas do alto-forno. Também não vamos visitar a Vala de S. Filipe, no Complexo Químico de Estarreja, com os solos contaminados, entre outros, com elevadas concentrações de arsénio e de mercúrio.

 

Tampouco vamos passar a tarde no Aterro de Santo André, situado em Santiago do Cacém, onde se encontram depositadas lamas industriais provenientes da ETAR de Ribeira dos Moinhos e de empresas situadas na plataforma industrial de Sines.

 

Não vamos, portanto, visitar um produto tóxico quantificável pelo valor do investimento público necessário para assegurar a respetiva descontaminação e tratamento, em segurança; investimento público que não se situa no domínio do “se”, mas antes na esfera do “como e quando”.

 

Nada disso, portanto. Será, antes, um sábado de desporto e convívio. Lazer mesmo, só que num produto tóxico. Mas não num estádio vazio do Euro 2004, por exemplo, em Aveiro, Leiria ou no Algarve. Tampouco num dos muitos pavilhões polidesportivos ou piscinas municipais recém-construídos que temos, fechados ou subaproveitados, um pouco por todo o país. Seria demais chamar a estes investimentos públicos “produto tóxico”, embora provavelmente ainda os esteja a pagar, no meu humilde contributo, com uma taxa de IRS e de IVA das mais elevadas da Europa, com a redução remuneratória e a com sobretaxa extraordinária.

 

Neste sábado desportivo com amigos, passado num produto tóxico, vamos visitar um dos principais atrativos para o setor do turismo em Portugal. Duplamente atrativo. Porque chama turistas de todo o mundo e porque constitui o principal argumento para ultrapassar o lado “tóxico” do setor, que é a sazonalidade gerada pelos produtos centrados no sol e mar.

 

Um dia de golfe, portanto.

 

Tóxico porquê? Pelo consumo de água para rega? Por ter obrigado ao abate de algumas árvores? Por algum outro leve impacto ambiental que não tenha sido compensado?

 

Não, tóxico porque, em redor de um campo bem desenhado, estão centenas de lotes urbanizados por construir, uma “imparidade” com origem no setor do imobiliário que pesa sobre as contas de um banco português em dificuldades, que ninguém sabe como reverter. E não é dos piores casos. Há poucas semanas o convívio de amigos teve lugar noutro “produto tóxico”, em que não são os lotes que estão vazios, mas antes a grande maioria dos fogos, unifamiliares e coletivos, já construídos. Aqui, a qualidade do campo de golfe e do serviço hoteleiro é inversamente proporcional à mediocridade do desenho urbano ou dos projetos-tipo dos edifícios; diria, uma “arquitectura tóxica”.

 

Em ambos os casos salva-se o hotel e o club house, apenas justificados pela associação ao campo de golfe, o que permite a este anónimo grupo de amigos partilhar o dia com ingleses, alemães ou dinamarqueses que vieram em Janeiro à costa atlântica apenas para usufruir do produto tóxico.

 

No pós-troika, o país tem de aprender a viver com os seus “produtos tóxicos”.

 

João Pedro Costa é o director do Jornal Arquitecturas.

TAGS: Editorial , João Pedro Costa , golfe , imparidades , urbanismo , produto tóxico
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