Há dias tive a oportunidade de dirigir um passeio técnico-cultural, dedicado a um grupo pertencente a uma associação de urbanistas europeus, principalmente franceses, percorrendo uma zona que começou no Príncipe Real e terminou no Chiado.
Foi ali, como podia ter sido na Baixa ou para São Paulo ou para a Mouraria; o importante é que o percurso feito deu para sentir as várias facetas de uma cidade que muda, melhora e se embeleza dia a dia, à custa de uma enorme multiplicidade de obras em edifícios e no espaço público.
O Príncipe Real é marcado pelo admirável jardim que esconde o tesouro que é a belíssima cisterna que sob ele se integra no grande Aqueduto, dando a toda a praça uma frescura singular, mesmo em tarde de calor abrasador que convida mais à sombra de esplanadas do que a caminhadas longas; a Praça transpira prosperidade, com os muitos palacetes que a rodeiam a serem sucessivamente restaurados nas várias frentes, não deixando adivinhar o passado oitocentista pouco glorioso de uma zona de ruínas, marginalidades e perigos.
Descendo um pouco, e espreitando o Bairro Alto pela sua Rua da Rosa, percebe-se o seu encanto, entende-se a sua origem quinhentista, de traçado pós-medieval, embora seja difícil distinguir, nas fiadas de prédios, alguns que tenham feito parte do desenho original do bairro: o grande terramoto e o homem deram-lhe a feição que hoje tem, fortemente marcada por reconstruções setecentistas e oitocentistas.
Voltando à periferia oriental do Bairro Alto, passada a D. Pedro V, está-se em S. Pedro de Alcântara, com o seu miradouro que é produto do acaso de obra do aqueduto que nunca se fez, pensada para a transposição do vale do que é hoje a Avenida da Liberdade.
Dali, vê-se uma cidade em efervescência a toda a volta, pela Baixa e na encosta do Castelo e, olhando a poente e a sul, entende-se um pouco o poder crescente é enorme da Misericórdia de Lisboa, dona do complexo de São Roque após a expulsão dos Jesuítas, mas também do Convento de São Pedro de Alcântara e agora de dois Palácios, o dos condes de Tomar e o de São Roque, o primeiro dos quais já a ser reabilitado para nele instalar, entre outras coisas o arquivo da Companhia (curioso como se fecham ciclos e se volta ao local de partida).
São Roque é uma delícia para os olhos, igreja e museu, ambos com obras de reabilitação e restauro recentes, só não se pode gabar mais porque há ali dinheiro que noutros sítios escasseia, mas louve-se quando o que se tem é bem gasto e a benefício colectivo.
Quem ali está, no largo de São Roque que é oficialmente de Trindade Coelho, não consegue adivinhar minimamente a cidade da primeira metade de setecentos, com o terramoto caiu o Carmo e a Trindade, e a seguir caiu o domínio dos conventos, toda a zona se secularizou, mesmo da cerca fernandina sobram escassos troços, quase todos semi-escondidos, o que se vê, rua da Misericórdia abaixo são fiadas de prédios de rendimento, apenas interrompidas pelo Teatro da Trindade, até se chegar ao Camões.
Quando aqui se chega tem-se à direita o largo com a estátua do poeta, obra de apenas cento e tal anos, pois durante muitas décadas ali permaneceram os casebres do Loreto sobre as ruínas do Palácio Marialva, fronteiro às portas de Santa Catarina; os edifícios em torno do largo são muito mais antigos, alguns terão mesmo origem anterior ao terramoto, outros foram construídos no século XVIII, quase todos com obras de reabilitação recentemente realizadas ou em curso.
Em andamento está a reabilitação de todo o quarteirão do Hotel do Bairro Alto, cujo terraço se transformou num ícone de Lisboa; quando esta obra estiver terminada, ficará muito beneficiado o Largo Barão de Quintela, cuja frente norte desmerecia do valor do conjunto e ganhará a cidade.
À esquerda do Camões estão as duas igrejas, a do Loreto, dos italianos, e a da Encarnação, ambas de cara lavada, a dar as boas vindas ao Chiado repleto de gente a todas as horas do dia e todo ele, quase, reabilitado e caríssimo, onde só chega a bolsa de alguns; afinal, o que é caro em Lisboa seria baratíssimo em Madrid, Paris ou Londres, e onde há na Europa cidade que se lhe compare, com rio que chegue aos calcanhares do Tejo, vistas deslumbrantes, clima fantástico, gente acolhedora e tranquila?
Terminado o passeio, tenho a sensação de que os meus companheiros de viagem gostaram do que viram, desta cidade contraditória, rica e pobre, nova e velha, decadente e viva, mas sempre acolhedora. E, porque muitos deles eram franceses, não pude deixar de me referir, a páginas tantas, à vitória de Portugal no Euro 2016.
João Appleton, é engenheiro civil (IST), especialista e investigador coordenador pelo LNEC, conselheiro do Conselho Superior de Obras Públicas e Transportes (aposentado) e sócio da A2P- Estudos e Projectos.