Comentário de João Appleton: A reabilitação e a soberania

29.04.2016

Estes são tempos de perda de soberania, em boa medida porque entendemos (todos nós e, sobretudo, os políticos que nos têm governado) que a ligação do País à União Europeia implica a partilha de alguns poderes decisórios, e a consequente perda de soberania em muitos aspectos, sobretudo na vida política e económico-financeira.


Perdemos soberania, seria inevitável, no que se refere ao nosso contrato com a UE, mas temo-la perdido também quando aceitamos (quem é com que mandato?!) alienar sectores estratégicos da nossa economia, em que o caso mais emblemático está no domínio chinês na produção e distribuição de energia, mas igualmente na banca e nos seguros em que fomos entregando os melhores anéis a quem mais oferecesse em leilões que um dia se compreenderão plenamente.


Isto tem acontecido e tem forte visibilidade, julgo que ninguém tem dúvidas: Portugal é cada vez menos poderoso, porque é cada vez menos soberano e mais fraco.


Menos visível, mas a merecer a nossa preocupação, é o caso da venda a retalho e ao estrangeiro (francês, inglês, chinês, americano...) do nosso melhor património arquitectónico, sendo paradigmático o que se passa com dezenas de palácios e casas nobres.


Conheço bem o caso de Lisboa, admito que algo similar se passará no Porto e em outros locais que possam apresentar-se como fortemente atractivos.


Partindo do exemplo dado pelo Estado e pela Câmara, seguidos por particulares empenhados em trespassar propriedades com séculos de existência e de história, que nada parecem dizer aos que deviam ser os mais directamente interessados em resguardar a história das suas famílias, têm vindo a mudar de mãos palácios e palacetes; com vistos dourados ou não, a verdade é que são estrangeiros de diversas nacionalidades que vêem aqui negócio de luxo, raridades arquitectónicas alienadas a valores que para eles são quase ao preço da chuva.


Prédio a prédio, palácio a palácio, Lisboa vai deixando de ser propriedade dos lisboetas e dos portugueses, é cada vez mais francesa, não nos hábitos mas na posse, e são esses mesmos estrangeiros que reabilitam as casas, com um distanciamento de sentimentos e uma racionalidade que os portugueses não teriam, são eles que vão beneficiar com a procura que a cidade tem, cidade na moda, na Europa e no Mundo, onde cada vez mais gente procura a beleza única e a segurança singular.


E, quando a laranja estiver bem espremida, quando passar a moda e Lisboa deixar de ser tão atractiva para o negócio de curto e médio prazo, o que ficará dos velhos palácios, quem voltará a cuidar deles?


Não se confunda este desabafo com patriotismo bacoco e balofo, mas não deixa de ser chocante a forma como aceitamos vender o que os nossos antepassados construíram, contribuindo deste modo para a perda de propriedade, com riscos para a própria identidade nacional; bem sei que os grupos económicos em Portugal e de portugueses são quase uma brincadeira e as grandes famílias não existem, o dinheiro dos novos ricos não pode ser mostrado à luz do dia, mas dá pena assistir dia-a-dia, impotente, a esta perda insidiosa, discreta, gota-a-gota, desta soberania mínima sobre o nosso território e o que de melhor nele se construiu.


É evidente que, em contrapartida, é bom que haja quem queira investir no melhor do nosso património arquitectónico, quem queira reabilitar velhas casas nobres hoje decrépitas, é trabalho, e muito interessante em tantos casos, para projectistas e construtores nacionais.


Também se deve equacionar se a promoção da reabilitação por investidores portugueses é necessariamente melhor do que a de estrangeiros, sobretudo nos investimentos mais individualizados, onde pode pesar positivamente a consciência cívica e a cultura mais enraizada que pode vir de fora.
Mas, vendidos sectores estratégicos, verdadeira ou falsamente privatizados, perdida a própria posse de muito do "nosso" património arquitectónico, onde está o futuro do País e para onde vai?


João Appleton, é engenheiro civil (IST), especialista e investigador coordenador pelo LNEC, conselheiro do Conselho Superior de Obras Públicas e Transportes (aposentado) e sócio da A2P- Estudos e Projectos.

TAGS: Comentário de João Appleton , reabilitação , construção , soberania
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