“A parte inferior, obscura e nocturna da casa, é o lugar dos objectos húmidos, verdes ou crús - jarros de água colocados em bancos de ambos os lados da entrada para o celeiro ou contra a parede escura , madeira, forragem fresca – lugar também de seres naturais – bois e vacas, burros e mulas -, de actividades naturais - o sono, o sexo, o nascimento - e também da morte; opõe-se, como a natureza à cultura, à parte alta, brilhantes, nobre, lugar dos humanos e, especialmente, dos convidados, do fogo e dos objetos feitos pelo fogo, a lâmpada, os utensílios de cozinha, a arma - um símbolo de orgulho masculino (ennif) que protege a honra das mulheres (hurma) – o tear, o símbolo de toda a proteção, lugar também de duas actividades propriamente culturais que acontecem no espaço da casa - cozinhar e tecer. Estas relações de oposição exprimem-se através de todo um conjunto de indicadores convergentes que as fundamentam e que, ao mesmo tempo, delas recebem sentidos. É em frente ao tear que se senta o convidado que se pretende honrar, qabel, verbo que significa também estar de frente e estar de frente para oriente”[1]
Assim escrevia Pierre Bourdieu em 1970 acerca da “Casa da Cabília ou o mundo ao contrário”. Durante a investigação que reuniu o material para esta publicação, estava-se em plena guerra de libertação nacional da Argélia, um país entre a pré-modernidade, a colonização, o conflito e o país novo e moderno que iria nascer aos encontrões. Na Cabília, região relativamente isolada na montanha, viviam-se estas contradições próprias de um tempo de mudança das referências culturais, dos universos tecnológicos ou simbólicos, das experiências de vida local ou como emigrantes em Paris. A antropologia da casa (ainda) tradicional da Cabília, constituia assim um laboratório riquíssimo para, a partir da casa ao mesmo tempo como objecto de estudo e dispositivo narrativo e simbólico acerca de visões do mundo, organizar toda uma diversidade de campos de sentido que convergem na casa ou a partir daí divergem.
Lembrei-me disto por causa desta casa algures em Malanje; argila amassada com palha em blocos cozidos ao sol com que se construiu uma casa – chamemos-lhe assim – mínima, o possível num mundo onde tudo falta menos o mau viver e a injustiça.
Esta casa multiplicada por milhões de casas da urbanização da pobreza, é uma espécie de horizonte de expectativas, um canto no mundo à medida do que se pode ter, um refúgio, um lugar para receber em tudo diferente da estridência da ostentação, do charme discreto e confortável de quem já nasceu no planeta oposto deste, ou das séries intermináveis e desencantadas dos apartamentos nas máquinas de habitar iguais em todo o universo.
A casa e quem lá vive condensa-se neste reposteiro que sugere o brilho e o toque da seda que aqui não existe. O drapeado é uma vaga memória de palácios ou de roupagens de senhores, colonos, deuses e outras potestades – o têxtil da magnificência e do poder. A porta, o limiar entre o interior e o exterior, entre a vida pública e a intimidade, é uma espécie de evocação mágica de um futuro melhor, um encantamento, uma representação de si para exorcizar tempos difíceis.
São assim a maioria das casas do planeta; mudam os materiais e os feitios e permanece o desconforto. Entre a nostalgia romântica da casa feliz - do aconchego do fogo do lar, espécie de couraça face à perplexidade e à violência do mundo -, e a escassez ou a fragilidade do abrigo do pobre, vai um abismo. Na maior parte das vezes, quando se fala de casas não se sabe muito bem daquilo que se fala ou se quer falar; entre as palavras e as coisas que elas denominam, tecem-se mil sentidos e evocações onde uns veem luzes e outros se enredam em infinitos labirintos. Em todo o caso, continua a ser possível pensar que se vive no paraíso, na casa das origens ou na velha casa onde nascemos.
Era Bachelard que dizia que o mundo visível foi feito para ilustrar a beleza dos sonhos.
Do invisível já sabíamos que era assim.
[1] BOURDIEU Pierre (2000), Esquisse d’une théorie de la pratique, précédé de Trois études d’ethnologie kabyle, Paris, Seuil, 2000 (1er éd. 1972), p 432. (cap. La maison kabyle ou le monde renversé)
Álvaro Domingues é licenciado em geografia, doutorado em Geografia Humana e professor e investigador na Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto.
Outros artigos do autor em:
http://www.correiodoporto.pt/category/rua-da-estrada
http://juponline.pt/2016/05/crise-de-identidade/